A Conformidade Com a Vontade de Deus (II)

"Uma ação de graças no tempo da tribulação vale mais que mil atos de agradecimento no tempo em que tudo nos prospera." (Pe. João d'Ávila). Segunda parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
Tempo Estimado de Leitura: 5 minutos

A Conformidade Com a Vontade de Deus (II)

"Uma ação de graças no tempo da tribulação vale mais que mil atos de agradecimento no tempo em que tudo nos prospera." (Pe. João d'Ávila). Segunda parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
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[…] Porém o grande ponto é abraçar a vontade divina em tudo quanto acontece, seja agradável ou desagradável às nossas inclinações. Nas coisas agradáveis, os pecadores se conformam com a vontade de Deus, porém os santos unem-se à vontade divina mesmo quando são desagradáveis e contra o amor próprio. Nisto se prova o nosso amor para com Deus. O padre João d’Avila dizia: Uma ação de graças no tempo da tribulação vale mais que mil atos de agradecimento no tempo em que tudo nos prospera.

Ademais, nós não só devemos unir-nos à divina vontade nas adversidades que diretamente nos vêm de Deus, como a doença, a desolação do espírito, a pobreza e a morte de nossos parentes, mas também nos casos promovidos pelas criaturas, assim como o desprezo, a perda da reputação, a injustiça, os roubos e todas as demais perseguições. Devemos entender, quando sofremos injúrias na nossa reputação, honra ou bens, que nosso Senhor não deseja o pecado que os outros cometem, mas sim a nossa humilhação, pobreza e mortificação. É certo e de boa fé que tudo quanto acontece no mundo é por permissão divina: Eu sou o Senhor, fora de mim não há outro. Sou o Senhor que faço todas as coisas” (Is 45, 6-7). Do Senhor nos vem os bens e os males, porque nos são contrários, mas que realmente são para nós bens, quando os aceitamos de suas mãos. Diz o profeta Amós: Haverá mal em alguma cidade que o Senhor não tenha feito? (Am 3, 6). E Salomão diz: O bem e o mal, a vida, a morte, a pobreza e a riqueza de Deus nos provêm” (Eclo 11, 14). É certo, conforme o que eu tenho dito, que quando o homem vos ofende não é essa ofensa desejada por Deus, nem Ele concorre na malícia de sua vontade, mas concorre pelo concurso geral das ações materiais que vos afligem, envergonham ou injuriam, de maneira que a ofensa recebida é sem dúvida permitida por Deus, e vem de sua mão. Assim o Senhor o disse a Davi que Ele seria o autor das injúrias que havia de receber de Absalão: Levantarei males contra ti, que procederão de tua própria casa; tirar-te-ei tuas mulheres diante de teus olhos, e isto em castigo dos teus pecados.” (II Sm 12, 11). Também disse aos Hebreus que, em consequência de suas iniquidades, lhes mandaria os assírios para os despojarem e arruinarem: Ai do assírio, ele é a vara e a espada da minha ira. Eu o mandarei para os despojar (ls 10, 5-6). Santo Agostinho assim explica isto: a impiedade dos assírios foi a espada de Deus para castigo dos hebreus. E o mesmo Jesus Cristo disse a S. Pedro que a sua morte e paixão não proviria tanto dos homens como da vontade de seu Eterno Pai: Não beberei Eu o cálice que o Pai me deu? (Jo 18, 11).

Quando o mensageiro (o qual se julga ter sido o diabo) veio dizer a Jó que os sabeanos lhe tinham tirado os seus bens e matado os seus filhos, que respondeu o santo homem? O Senhor os deu, e o Senhor os levou (Jó 1, 21)[1]. Ele não disse: “O Senhor deu-me filhos e bens, e os sabeanos tudo me tiraram”, mas sim: “o Senhor mos deu e o Senhor mos levou”; porque ele bem sabia que a sua perda fora permitida pelo Onipotente, e depois acrescentou: Assim como foi do agrado do Senhor, assim se fez: bendito seja o nome do Senhor. Não devemos portanto receber nossos infortúnios como da mão do acaso ou da malícia dos homens, mas devemos estar persuadidos de que tudo quanto nos acontece é pela vontade de Deus. “Conhecei”, diz Santo Agostinho, “que tudo quanto no mundo vos sucede é pela vontade de Deus, ainda que seja contrario à vossa”.

Os bem-aventurados Mártires de Jesus Cristo, quando sofreram o tormento, queimados com fachos por ordem do tirano, e dilacerados com ganchos de ferro, disseram somente: Senhor, seja feita em nós a vossa vontade. E quando chegaram ao lugar da execução, exclamaram em altas vozes: Bendito sejais, ó Deus Eterno, porque a vossa vontade se cumpriu amplamente em nós.

Cesário relata (Lic. 10, cap. 6) que certo religioso, que ainda que exteriormente não era diferente dos demais, tinha contudo chegado a um tal grau de santidade, que, pelo mero toque de seus hábitos, curava aqueles que estavam doentes. O Superior, admirado disso, perguntou-lhe como fazia ele esses milagres, não vivendo mais exemplarmente do que os outros: ao que o religioso respondeu que também se admirava, e não sabia a razão disso. Mas quais são as vossas devoções? (Lhe tornou o abade). O bom religioso replicou que poucas eram, ou, para melhor dizer, nenhumas, mas que sempre tinha cuidado de entregar a sua vontade à vontade de Deus, e que nosso Senhor lhe havia concedido a graça de abandonar inteiramente a sua vontade à divina. A prosperidade não me eleva, nem a adversidade me abate, porque eu tudo recebo como vindo da mão de Deus, e para este fim dirijo todas as minhas preces, para que a sua vontade se cumpra perfeitamente em mim. O Superior lhe replicou: Não vos ressentistes vós ontem contra o inimigo, que tanto nos prejudicou, roubando-nos os nossos mantimentos, e lançando-nos o fogo na nossa propriedade, destruindo-nos o nosso gado e a nossa seara? Não, foi a sua resposta, pelo contrário, dei graças a Deus como costumo fazer em iguais desgraças, conhecendo que Deus faz ou permite tudo para a sua maior glória e nosso maior bem; e por essa razão sempre estou contente, suceda o que suceder”. Ouvindo isso o abade e vendo-o em tanta uniformidade com a vontade divina, não se admirou mais de que ele fizesse milagres. Aquele que assim fizer não só vem a ser um grande santo, mas goza de uma paz perpétua.


Nota:

1.    E diz o versículo seguinte: Em tudo isso, Jó não cometeu pecado algum, nem proferiu contra Deus blasfêmia alguma. (Jó 1, 22).

Referência:

1.    LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Tratado da Conformidade com a vontade de Deus. Niterói – RJ: Escola Salesiana, 1913, p. 9-14.

Maria Sempre!

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