A chamada “heresia das obras”

Aprendamos, com este artigo do padre dominicano Juan González Arintero, porque não podemos trocar o Deus das obras pelas obras de Deus.
Tempo Estimado de Leitura: 4 minutos

A chamada “heresia das obras”

Aprendamos, com este artigo do padre dominicano Juan González Arintero, porque não podemos trocar o Deus das obras pelas obras de Deus.
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Algumas pessoas piedosas, levadas por um zelo indiscreto – e talvez também por certa vaidade –, se consomem em obras exteriores, persuadindo-se de que, com isso e nada mais, enchem-se de méritos e avançam rapidamente na perfeição cristã. Mas essa consiste, como já dissemos, no íntimo ser mais que no agir exterior. E o valor e mérito de nossas obras correspondem ao grau de renovação e santificação de nossas almas: se somos muito santos, produzindo sempre inflamados da caridade divina, alcançaremos que sejam aos olhos de Deus muito grandes e de muito valor e eficácia todas as nossas obras, embora exteriormente pareçam humildes e mesmo desprezíveis, ao passo que as que saem de um fundo pobre, pobres têm que ser por necessidade, ainda que aparentem ser grandiosas e cheias de glória.[1] E se nossa perfeição é nula – por nos acharmos mortos à vida da graça –, nada podem valer diante de Deus as mais excelentes obras que empreendamos; por barulhentas que possam ser, resultam mortas e vãs.[2] Quanto mais vivos estejamos em Jesus Cristo, e mais cheios de seu Espírito, tanto mais propriamente seremos filhos de Deus, e tanto mais divinas e meritórias virão a ser nossas ações. Pois, como adverte Santo Tomás[3], “um ato é tanto mais meritório, quanto maior é a graça de que está informado”. E igual à graça, enquanto mais informadas estejam nossas obras pela caridade atual, mais puras e vitais são, mais livres do pó terreno e mais capazes de aumentar a graça e a glória. “Daí que possa ter mais valor, como diz São Francisco de Sales[4], uma pequeníssima virtude numa alma abrasada no amor sagrado, que o próprio martírio em outra cujo amor é lânguido, débil e lento”. Por isso, na alma santa, que está ardendo em caridade, tudo fere o coração do Esposo divino, a quem se entregou sem reservas: fere-o com seu doce e simples olhar e até com um dos seus cabelos, porque é toda para seu Amado, que se apascenta entre os lírios, e Ele para ela.[5] Se trabalha em ofícios vis, suas mãos destilam mirra preciosa, porque suas obras são fruto da caridade e da própria abnegação, e embora durma, como está seu coração velando, compraz tanto ao Esposo, que Ele repetidas vezes conjura as filhas de Sião para que não a despertem (Ct 2, 7-16; 3, 5; 4, 9; 5, 2-5; 6, 2; 8,4). Enfim, quanto mais elevada e nobre é a virtude, que vai informada pela caridade, tanto mais meritórias e excelentes são por si mesmos todos os seus atos. Daí que a virtude da religião prepondere sobre todas as morais, e que as da vida contemplativa ou interior valham mais que as do exterior, embora todas sejam necessárias no seu tempo e todas se apoiem mutuamente, e a completa perfeição esteja em sabê-las harmonizar.

Mas o interior vale por si só, enquanto que o exterior sem o interior é coisa estéril e morta. Assim, as muitas obras exteriores, sem a retidão de intenção e pureza de coração que as limpem do pó terreno, ou sem o espírito de oração que as fecundem com a irrigação da graça e o ardor da caridade, são de mui escasso valor diante de Deus, por mais que sejam muito apreciadas pelo mundo e por certos modernistas. E mesmo podem resultar totalmente vãs e até prejudiciais, se de tal modo absorvem, que deixem esgotar a fonte das energias e só sirvam de sustento ao amor próprio e fomento da vaidade.[6] Se as muitas pessoas que, levadas por bons desejos, se entregam até um excesso de ação exterior, dedicassem a metade desse tempo que as consume a cuidar de sua alma e renovar seu espírito, com só a outra metade – dizem, com São João da Cruz[7], todos os grandes mestres espirituais – produziriam fruto em dobro e com muito menos trabalho.[8]

No entanto, o próprio fervor e a devoção se fomentam – sobretudo nos princípios – com as boas obras exteriores e com todas as práticas piedosas que merecem a aprovação da Igreja, e que cada alma fiel procura fazer em particular segundo o tempo de que dispõe e o especial atrativo que senta sob a suave moção do Espírito Santo. Mas nelas deve preservar-se de certos sentimentalismos vazios e de sabor protestante, assim como de muitas rotinas que facilmente se introduzem, e que são totalmente opostas ao espírito cristão e aos desejos da Igreja, que quer que sirvam como de preparação e não de obstáculo à inspiração divina.[9]

Para progredir verdadeiramente na oração e devoção, é preciso que essas estejam bem apoiadas na contínua mortificação de nossos sentidos e paixões.[10] A alma regalada é incapaz de conhecer o caminho da divina Sabedoria. Se não mortifica todos os seus sentidos e não refreia todas as suas paixões até reduzi-las ao silêncio, não alcançará ouvir a doce voz do Espírito que quer lhe falar ao coração palavras de paz, nem poderá sentir as delicadas moções e inspirações com que lhe está sugerindo e ensinando toda verdade e guiando pelos caminhos da justiça e da vida. Por isso dizem todos os santos unanimemente que, sem grande apreço pelas austeridades, é impossível que haja verdadeiro espírito de oração; porque essa exige uma grande pureza de corpo e de alma, e, pelo mesmo motivo, uma longa série de purificações. O quanto se cresce na purificação tanto se facilitará e fomentará a obra do divino Espírito e tanto progredirá na iluminação, união e renovação.


Notas:

1.   “Há almas, diz o Pe. Huby (Máximes § 12), que tudo reduzem, porque elas são muito pequenas. Reduzem as maiores ações, porque as fazem com um coração muito pobre… Fazer com pouca vontade um grande bem é fazer tão somente um pequeno bem; e fazer com grande vontade um pequeno bem é fazer um grande bem. O que dá às nossas ações serem pequenas ou grandes diante de Deus é a vontade com que se fazem”.

2.   Cf. S. Th., In 2 Sent. d. 27, q. 1, a. 5 ad 3.

3.  Ib., d. 29, q. 1, a.4.

4.   Tratado del amor de Dios 11, c. 5.

5.   “Este cabelo seu, diz São João da Cruz (Cânt. Esp. 30), é a vontade dela e o amor que tem ao Amado… Diz um só cabelo e não muitos, para dar a entender que sua vontade já está só n’Ele”.

6.   “Estejamos bem persuadidos, diz Lallemant (Doctr. pr. 5, c.3, a.2, § 5), de que o fruto que temos de produzir em nosso ministério será proporcional à nossa união com Deus e ao nosso esquecimento do próprio interesse… Para trabalhar utilmente em proveito de outros, necessita-se haver feito grandes progressos na própria perfeição. Até que tenha se adquirido uma virtude perfeita se deve levar em conta muito pouco a ação exterior. E se os superiores a impõem com excesso, deve-se confiar na Providência, que disporá de tal modo as coisas, que diminua a carga e que tudo redunde em maior bem dos súditos virtuosos”.

7.   Cânt. Espirit., anotac. a la canc. 29.

8.   “De duas pessoas que se consagram ao mesmo tempo ao serviço divino, e uma que entrega às boas obras e outra se aplica totalmente a purificar seu coração e tirar dele tudo o que se opõe à graça, essa última chegará à perfeição dupla antes que a primeira” (Lallemant, pr. 4, c.2, a.1).

9.   “Alguns, acrescenta o Pe. Lallemant (ib.), têm lindas práticas exteriores e fazem grande número de atos externos de virtude, atendendo totalmente à ação material. Isso é bom para os principiantes. Mas é muito mais perfeito seguir a interior atração do Espírito Santo e deixar-se levar por seus impulsos”.

10.   Cf. Rodriguez, Ejercicio de perfección 2ª p. tr. 1. C. 1.


Referências:

1.    ARINTERO, Pe. Juan González. A Evolução Mística e o desenvolvimento e vitalidade da Igreja. Rio de Janeiro: Editora CDB, 2019, primeira parte, cap. IV, § 2º, p. 347-349.

Nota da Edição do Site: A opinião dos articulistas não reflete necessariamente a posição da Sociedade da Santíssima Virgem Maria.

Maria Sempre!

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