Semana Santa! Momento que requer de nós cristãos mais piedade e zelo para com a causa de Nosso Senhor Jesus Cristo, a nossa própria salvação. Momento em que a Cruz (em variadas denotações e conotações) se faz mais pungente!
No cenário atual do mundo, a exigência e o peso da cruz, talvez, sejam ainda maiores. A moral católica é devastada, denegrida e atacada por todos os lados. Inimigos da Cristandade avançam cada vez mais nos seus propósitos, impondo sobre nós leis absurdas baseadas em ideologias péssimas e contraditórias e forçando-nos a ceder a tudo isso. Deste cenário já nos alertava o então Cardeal Ratzinger: “Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, é frequentemente catalogado como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor de qualquer vento de doutrina, aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio ‘eu’ e os seus apetites.” [1]
Ora, aquele que sucumbe à ditadura do relativismo faz tal qual os Judeus tentando justificar porque queriam a crucificação de Cristo: “Nós temos uma Lei, e, segundo esta Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”[2] Cientes de tudo isso, resta perguntarmo-nos qual a nossa posição: será que faremos tal qual a multidão que gritava “crucifica-o!”[3]e como Pilatos que lavou as suas mãos?[4] Ou carregaremos a cruz como fez Simão Cireneu[5] e subiremos ao Calvário com coragem como Nossa Senhora e o Apóstolo São João?[6] Enfim, muitas são as reflexões que podemos fazer acerca de nós mesmos em relação à paixão de Nosso Senhor. As respostas para estes questionamentos nos elucidarão a autenticidade da nossa vivência cristã.
Há algum tempo, o Papa nos apresentou a seguinte questão: “Sou como Judas, capaz de trair Jesus, ou como os discípulos que não entendem nada, que dormiam enquanto que o Senhor sofria? Minha vida está adormecida?”[7]Esta pergunta abre um leque de considerações a serem feitas, afinal, em que consiste exatamente a traição? Qual é a medida da ignorância? A figura de Judas Iscariotes ainda é bastante emblemática, meditar sob ela à luz da Tradição, em relação as nossas vidas, pode ser muito proveitoso para nossa santificação.
Bem, é importante lembrarmo-nos do que disse Nosso Senhor Jesus Cristo aos seus apóstolos, inclusive a Judas: “Se guardares os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; do mesmo modo que tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor.” Portanto, “já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer. Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça (…).”[8] Judas era escolhido e querido por Cristo, sendo assim, um privilegiado. Certamente, no princípio ele correspondeu a tão belo chamado e rendeu alguns frutos. Aliás, todo e qualquer autêntico cristão recebe alto privilégio, pois, existe dádiva maior do que a de ser reconhecido como filho de Deus a partir do batismo? Desta forma, somos todos chamados a dar testemunho do evangelho, cada um de acordo com sua condição. A potencialidade de Judas Iscariotes era imensurável, afinal ele era apóstolo e convivia diretamente com Nosso Senhor.
No entanto, alguns chegam a supor absurdamente que Judas foi escolhido para ser o traidor, afinal Jesus sabia a malícia que Judas carregava consigo.[9] Grande falácia! De fato, Jesus sabe de todas as coisas e sabia da traição que, em sua liberdade, Judas viria a cometer. Mas Judas, assim como todos os apóstolos fora tocado pela misericórdia de Cristo e demonstrava grande disposição em servir Nosso Senhor. Era, portanto, um verdadeiro amigo de Cristo e junto a ele também operou prodígios. Como, então, alguém que vive na companhia constante e real do Amor humanado, encontra razões e ocasiões para cometer tamanha perversidade de traí-lo?
Não é possível que tamanho ato de iniquidade tenha sido espontâneo. Ou seja, Judas não resolveu trair repentinamente, muito menos estando ele na companhia constante de Jesus. A situação de apóstolo não o dispensou da necessidade de vigilância e prudência, pois Jesus nos fornece todas as graças necessárias para vivermos em comunhão com Ele, mas é preciso uma disposição pessoal em conformidade com esta graça. Isto significa que Judas teria vacilado aqui e ali em momentos de prova. Estando ele em tão alta posição, era de se esperar também grandes provações e tentações.[10]
Por misericórdia, Deus nos prova a fim de nos santificar (nunca para além de nossas forças) e até mesmo permite que o demônio (alimentado pelo seu ódio) nos tente. Mas Deus não quer que pereçamos, e sim, que auxiliados por Sua graça, vençamos, com Ele, o pecado. Portanto, Judas distanciava-se de Cristo, mesmo estando na presença dEle, na medida em que ia permitindo a ação do demônio.[11] Claro que ele não permitia deliberadamente, mas ao passo em que voltava-se para o seu ego e suas vaidades, ia, por mais disparate que isso pareça, se esquecendo de Deus e tolerando uma “sugestão demoníaca”, até cair em uma possessão.
Judas, com seu beijo, traiu Aquele que lhe chamava de amigo! [12] – Cristo ainda o chamava assim porque ainda o amava e o queria com Ele, e era ainda possível o arrependimento – Obstinado em sua malícia, executou o seu perverso ato! É justo que reprovemos, rechacemos e repudiemos a traição de Judas. Mas é preciso que pensemos se não estamos sendo hipócritas… Quantas vezes deixamos de prestar culto a Deus por causa de nossa tibieza? Deixamos de rezar um dia, faltamos à missa em outro, questionamos a doutrina em um ponto, não nos esforçamos em evitar os pecados (ainda que veniais) … As ocasiões mínimas que vão abrindo brechas para o demônio são incontáveis. Se não nos atentarmos no básico mais cedo ou mais tarde cairemos em coisas mais graves, a apostasia, por exemplo, que corresponde totalmente a uma traição. Ou seja, de certa perspectiva, somos traidores sempre que consentimos com a ditadura do relativismo e os pecados, tão presentes no mundo. Ao pensar isso, não devemos nos desesperar como fez Judas. Mas ter a consciência da nossa mazela (até mesmo da nossa vulnerabilidade diante das provações) já é um sinal da misericórdia de Deus. É o mesmo que Cristo nos chamando de amigo no momento de fraqueza.
Portanto, devemos nos lembrar que a Redenção de Jesus na cruz é extensiva a todos, por mais iníquos que possamos ser. Porque Cristo, ao derramar seu sangue quis salvar a todos. Porém cabe a nós reconhecermos e nos arrependermos de nossos pecados, suplicando a Deus que, por intercessão de Nossa Senhora, possamos integrar nossos sofrimentos à cruz de Cristo. Pois, quanto mais somos tocados pela misericórdia do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com o seu sofrimento – tornamo-nos disponíveis para completar na nossa carne o que falta à Paixão de Cristo.[13]
Referência bibliográfica:
HOPHAN, Otto. Judas Iscariotes. tradução de Roberto Vidal da Silva Martins. Ed. Quadrante. São Paulo. 1996, 56 páginas.
1. Missal Cotidiano e Vesperal, por D. Gaspar Lefevbre, edição de 1940, p. 3-5.
Notas:
1. Texto da homilia do então Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, pronunciada na Missa Pro Eligendo Pontífice, celebrada no dia 18 de abril de 2005.
2. Jo 19, 7.
3. Jo 19, 6
4. Mt 27, 24
5. Mt 27, 32
6. Mt 27, 25-27
8. Jo 15, 10-16
9. Jo 6, 70
10. Lc 12, 48
11. Lc 22, 3 e Jo 13, 27
12. Mt 26, 50
13. Col 1, 24