[…] Numa palavra, o que mais deseja Deus, que não seja o nosso bem? Quem acharemos que nos ame mais do que Deus? A sua vontade é não só que ninguém se perca, mas que todos se façam santos e sejam salvos: Não querendo que alguém pereça, mas que todos se arrependam. (II Pe 2, 9). A vontade de Deus é a vossa santificação. (I Ts 4, 3). Deus tem colocado a sua própria glória no nosso bem porque, sendo em sua essência infinita bondade, como diz S. Leão, e a bondade sendo por natureza desejosa de comunicar-se, Deus tem o soberano desejo de nos fazer participantes de seus bens e felicidade. E se nos manda as tribulações nesta vida, manda-as todas para o nosso bem: Tudo coopera para o bem nosso. (Rm 8, 28). Os mesmos castigos, dizia Santa Judite, não vêm para nossa ruína, mas para nossa emenda e salvação. Acreditemos, pois, que estes flagelos do Senhor acontecem para nossa emenda, e não para nossa destruição. (Jd 8, 27). Nosso Senhor, para nos salvar de eternas penas, cerca-nos com a Sua bondade: Ó Senhor, tu nos tens coroado como com um escudo da tua vontade. (Sl 5, 13). Ele não só deseja, mas solicita o nosso bem: O Senhor é zeloso em meu bem. (Sl 39, 18). E qual será a coisa, diz S. Paulo, que Deus nos negará, Ele que nos deu o seu próprio Filho? Ele, que não poupou o Seu Unigênito, mas que O entregou por nós à morte, não nos deu com Ele todas as coisas? (Rom 8, 32). Com confiança, portanto, devemos resignar-nos aos divinos decretos e determinações, como sendo tudo para nosso bem: Em paz, na mesma paz, dormirei e descansarei porque tu, ó Senhor, me tens seguramente inspirado esperança. (Sl 4, 9). Entreguemo-nos, pois, em suas mãos, porque Ele sem dúvida terá cuidado de nós: Ponde todo o vosso cuidado n’Ele, porque Ele tem cuidado de vós. (I Pe 5, 7). Pensemos, pois, em Deus e no cumprimento de sua santa vontade, para que Ele pense em nós e no nosso bem.
Filha – disse o Senhor a Santa Catarina de Sena -, pensa em mim, para que eu pense sempre em ti. Digamos frequentemente com a sagrada Esposa: O meu Amado para mim, e eu para Ele. (Ct 2, 16). O meu Amado pensa no meu bem, e eu só devo pensar em agradar-lhe, e unir-me em tudo à sua santa vontade. O santo Abade Nilo disse que não devemos rogar a Deus para conseguirmos o que desejamos, mas sim para que em nós se cumpra a Sua santa vontade. E quando a adversidade nos persiga, aceitemo-la das mãos de Deus, não só com paciência, mas com alegria, segundo o exemplo dos Apóstolos, que saíram da presença do conselho, alegrando-se de serem dignos de padecer opróbrios pelo nome de Jesus Cristo. (At 41.) Qual pode ser a maior felicidade da alma do que saber, quando sofre qualquer tribulação, que sofrendo de boa vontade, se torna sobretudo agradável a Deus? Os escritores sobre a vida espiritual nos dizem que, ainda que Deus se apraza com o desejo que algumas almas têm de sofrer por Ele, e de Lhe agradar, muito mais aprazível Lhe é a uniformidade daqueles que nem desejam gozar nem sofrer, mas que inteiramente se resignam à Sua santa vontade, desejando somente cumpri-la. Se desejais agradar a Deus, e viver feliz no mundo, uni-vos sempre em todas as coisas à vontade divina. Refleti que todos os vossos pecados e a amargura de vossa vida passada têm procedido de vos afastardes da vontade de Deus. Abraçai, pois, daqui em diante, a vontade divina e dizei sempre em qualquer acontecimento: Assim seja, meu Pai, porque assim é agradável à Vossa vista. (Mt 11, 26).
Quando vos inquieta algum caso adverso, pensai que vos foi mandado por Deus, e dizei imediatamente: Mudo fiquei e não abri a boca, porque vós o tendes feito (Sl 38, 10). Senhor, pois que vós assim o fizestes, eu nada digo, e o aceito. A este fim deveis dirigir todos os vossos pensamentos e orações, procurar rogar a Deus na meditação, na comunhão, nas visitas ao Santíssimo Sacramento, para que vos auxilie a cumprir a Sua vontade. E mesmo oferecer-vos a Ele, dizendo: Ó meu Deus, eu aqui estou: faça-se em mim, e em tudo quanto me pertence, o que for mais do Vosso agrado. Era esta uma constante prática de Santa Teresa: esta santa se oferecia a Deus pelo menos cinquenta vezes no dia, para que Ele se dignasse dispor dela, como melhor Lhe agradasse.
Feliz de vós, amado leitor, se sempre fazeis outro tanto!
A santidade será a consequência, e, tendo passado uma ditosa vida, concluirá com uma não menos ditosa morte. Quando se passa desta para outra vida, a esperança que os que ficam concebem da salvação do que foi procede do conhecimento que haja de que morreu com resignação. Se abraçamos todas as vicissitudes da vida, como vindas da mão de Deus, e mesmo a morte, com submissão à Sua vontade, por certo que morreremos santos, e seremos salvos. Abandonemo-nos, pois, em tudo à boa vontade d’Aquele Senhor, que, sendo o mais sábio, conhece o que melhor nos convém: e sendo o mais amante, pois que deu a Sua vida por nosso amor, quer também o que é melhor para nós. Fiquemos certos e persuadidos, diz S. Basílio, que Deus procura o nosso bem, sem comparação melhor, do que nós o podemos procurar ou desejar. Mas prossigamos e consideremos em que coisas nos devemos unir com a divina vontade.
1) Devemos unir-nos à vontade de Deus nas coisas naturais, como quando faz frio, calor, quando chove, ou em tempo de escassez ou epidemia, e em outros casos iguais. Devemos abster-nos de dizer: que intolerável frio, que horroroso calor! que desagradável estação! Ou fazermos uso de algumas expressões que mostrem a nossa repugnância para com a vontade de Deus. Devemos querer tudo como é, porque Deus de tudo dispõe. S. Francisco de Borja, indo uma noite a um convento da sua ordem, enquanto nevava muito, bateu à porta muitas vezes; porém os padres, que estavam dormindo, não lha abriram. Quando amanheceu, muitos deles lastimaram tê-lo feito esperar tanto fora de casa; mas o santo lhes disse que ele tirara muita consolação durante aquele tempo, pensando que era Deus quem fazia cair os flocos de neve sobre ele.
2) Devemos unir-nos à divina vontade, quando padecemos fome, sede, pobreza, desolação e desonra. Em todo o caso, devemos dizer: “Senhor, Vós fazeis e desfazeis, e eu estou contente, desejando unicamente o que Vós quereis.” E o mesmo devemos dizer, diz Rodrigues, naqueles casos imaginários sugeridos por Satanás, na intenção de nos fazer cair em alguma maldade, ou pelo menos para nos inquietar. Se alguém vos dissesse estas e aquelas palavras, ou vos fizesse estas ou aquelas ofensas, que diríeis? Que faríeis? Devemos responder: Eu diria e faria o que Deus quisesse. E assim nos livraríamos de toda a falta de inquietação.
3) Se temos algum defeito natural, ou no nosso espírito ou no nosso corpo, como ter pouca memória, engenho rude, pouca habilidade, falta de algum membro, saúde fraca, não nos lastimemos. Pois que merecimento tínhamos para que Deus nos desse uma alma mais sublime, ou um corpo mais bem organizado? Não podia Ele permitir que nascêssemos na classe dos brutos?[1] Não podia Ele deixar-nos no nosso nada? Demos graças ao Senhor por tudo que Sua bondade nos tem concedido, e por tudo que faz. Quem sabe se, tendo nós tido maiores talentos, uma perfeita saúde, e um corpo extremamente bem organizado, nos teríamos perdido?! A quantos a sua ciência e o seu saber têm sido a origem da soberba e do desprezo com que tratam os outros, e por isso causa da sua perdição? Em tal perigo estão outros muitos, que se adiantam nas ciências e nos talentos. A quantos outros a beleza e suas forças têm sido causa de muitos crimes! E ao contrário quantos por serem pobres, enfermos e disformes na sua figura, se têm salvado, e sido santos? E quantos se fossem ricos, instruídos e de boa presença, se teriam perdido e condenado? Portanto, contentemo-nos com o que Deus nos tem concedido. Não é necessária a beleza, a saúde, nem um engenho agudo, só é necessário o salvar-nos, disse Jesus Cristo.
Devemos particularmente ser resignados nas enfermidades corporais, e voluntariamente abraçá-la de maneira e pelo tempo que Deus tenha determinado visitar-nos com elas. Devemos tomar remédio, para restaurarmos a saúde: porque tal é a vontade de Deus: porém, não aproveitando estes, devemos unir-nos à vontade divina, o que nos será de maior vantagem do que a mesma saúde; e devemos dizer em ocasiões tais: “Senhor, eu não desejo a saúde nem a doença, desejo unicamente que a Vossa vontade seja feita. “É sem dúvida grande virtude não lamentar nossas aflições, durante o tempo da dor ou enfermidade; porém, quando estas pesam sobre nós, não nos é vedado descrevê-la a nossos amigos, nem mesmo rogar a Deus que nos livre delas. Falo daquelas dores ou enfermidades que atacam severamente, pois há muitos tão insofridos[2], que, pela mais leve indisposição ou fadiga, pretendem obter a compaixão de todos. O mesmo Jesus Cristo, começando a Sua Paixão, deu a conhecer a Seus discípulos a Sua tribulação: A minha alma está triste até a morte (Mt 26, 38). E Ele rogou ao Seu Eterno Pai que O livrasse dela: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice. (Mt, 26, 39). Mas o mesmo Jesus nos ensinou que o que devemos fazer, depois de tais preces, é resignar-nos imediatamente à vontade divina, dizendo: não como eu quero, mas como Vós quereis.
Notas:
1. Os animais irracionais.
2. Pouco pacientes para sofrer.
Referências:
1. LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Tratado da Conformidade com a vontade de Deus. Niterói – RJ: Escola Salesiana, 1913, p. 20-28.