A Conformidade Com a Vontade de Deus (VI)

"Oh!, quão melhor é estar em secura e tentação com a vontade de Deus, do que em contempla­ção sem ela!" (João d'Ávila). Sexta parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
Tempo Estimado de Leitura: 7 minutos

A Conformidade Com a Vontade de Deus (VI)

"Oh!, quão melhor é estar em secura e tentação com a vontade de Deus, do que em contempla­ção sem ela!" (João d'Ávila). Sexta parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
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[…] Também nos devemos resignar na desolação do espírito. Nosso Senhor, quando uma alma se entrega à vida espiritual, cos­tuma socorrê-la com abundantes consola­ções místicas, em ordem a subtraí-la aos mundanos deleites; porém, vendo-a estabe­lecida em espírito, retira Sua onipotente mão para obter uma prova do amor que esta alma Lhe dedica, e ver se ela O servirá sem a recompensa neste mundo de delícias sensíveis. Enquanto vivermos no mundo, diz Santa Teresa, a nossa van­tagem não é tanto em gozar de Deus em si mesmo, como em fazer a Sua divina von­tade. E em outra parte, diz: O amor de Deus não consiste tanto em ternuras espirituais, como em servi-lO com fortaleza e humildade. E continua: Deus experi­menta aqueles que ama, com securas es­pirituais e tentações. [1]

Deve, pois, a alma agradecer ao Senhor, quando Lhe apraz favorecê-la com doçuras espirituais; mas não se afligir nem se impacientar quando a entrega à desolação. Devemos especial­mente atentar a esse ponto, porque al­gumas almas fracas, quando experimentam securas espirituais, pensam que Deus as tem abandonado, pelo menos que não lhes é própria a vida espiritual, e por esse mo­tivo descuidam-se da oração, e perdem o benéfico resultado do que até ali haviam praticado. Não há melhor ocasião para a conformidade com a vontade de Deus do que o tempo da secura espiritual. Não digo que não seja sensível a perda da divina presença: impossível é que a alma não a sinta, e não a lamente, quando o nosso mesmo Redentor a sentiu e lamentou sobre a cruz: Meu Deus, meu Deus, porque me desamparaste? (Mt 25, 46). Porém, em tão grande aflição, devemos re­signar-nos inteiramente com a vontade de Nosso Senhor. Todos os santos sofreram securas e desolação de espírito. Que dureza de coração eu experimento, dizia S. Bernardo, já não gozo na leitura espiritual, nem na meditação. A maior parte dos santos viveram em secura espiritual, e sem consolações. Estas, o Senhor não as concede senão raras vezes, e talvez aos espíritos mais fracos, para que não parem na car­reira espiritual. As delícias da recompensa nos são preparadas por Ele no Céu. Este mundo é o lugar onde as adquirimos pela penitência; o Céu é o lugar da recom­pensa. Por consequência os santos não se entregavam ao fervor com deleites, mas sim com penitências. O venerável João d’Ávila dizia (Audi. fil. C. 26): Oh!, quão melhor é estar em secura e tentação com a vontade de Deus, do que em contempla­ção sem ela!

Mas direis vós: se eu soubesse que esta desolação vinha de Deus, ficaria satis­feito; porém o que me aflige e me perturba é o temor que proceda das minhas faltas, e que seja um castigo de minha tibieza. Pois bem, lançai fora essa tibieza e sede mais diligente. Mas talvez, porque estais em trevas, vos achais inquieto, vos descui­dais da oração e do exercício espiritual, e as­sim tornais o mal pior. A secura espiri­tual pode vos ter sido mandada como um castigo, como eu tenho dito; mas não é ela vos mandada pelo Altíssimo? Aceitai-a, pois, como um castigo que tendes merecido, e uni-vos à divina vontade. Não dizeis vós que tendes merecido o inferno? Então porque vos lamentais agora? Acaso mere­ceis receber consolações de Deus? Ficai, pois, satisfeito da maneira com que ao Senhor apraz tratar-vos; continuai vossas devoções, e avançai com intrepidez, receando que para o futuro vossos lamentos procedam de falta de humildade e re­signação à vontade de Deus. Quando a alma se entrega à oração, não pode derivar dela maior vantagem do que a união com a von­tade divina; resignai-vos, pois, e dizei: Senhor, eu aceito esta tribulação da Vossa mão, e a aceito pelo tempo que Vós quiserdes; mesmo que Vos fosse agradável que eu permanecesse aflito por toda a eternidade, eu estaria satisfeito. E assim, essa oração, ainda que penosa, vos será mais vantajosa do que as mais suaves consolações.

Mas devemos também persuadir-nos de que a secura espiritual não é sempre um cas­tigo, mas muitas vezes disposição de Deus para nosso maior bem, e também para nos conservar humildes. Em ordem a que São Paulo não se tornasse vaidoso, com as mercês que tinha recebido, permitiu o Senhor que ele fosse molestado com tentações de impureza: E para que a grandeza das revela­ções não me exaltasse, foi-me dado o es­tímulo de minha carne, anjo de Satanás, para atormentar-me. (2 Cor 12, 7). Aquele que ora a Deus com espiritual do­çura e deleite bem pouco faz. É um amigo e companheiro à mesa, mas me deixará no dia de aflição. (Eclo 6, 10). Vós não considerais como verdadeiro amigo aquele que só vier à vossa mesa e tomar parte em vossos divertimentos, mas sim aquele que vos vem valer nos trabalhos, e vos acudir nas tribulações, sem que disso tire vantagem própria.

Quando Deus manda a obscuridade e a desolação, é para pôr à prova os Seus verdadeiros amigos. Paládio, tendo sofrido grande secura espiritual na oração, foi con­sultar São Maurício, que lhe disse: Quando o inimigo vos tentar para que deixeis a oração, dizei-lhe: Eu me satisfaço de aqui ficar pelo amor de Jesus Cristo, e mesmo só para guardar as paredes desta cela. Tal deve ser a vossa resposta, quando fordes tentado a não continuar na oração, porque vos parece que nisso perdeis tempo. Dizei nessas ocasiões: Aqui estou para agradar a Deus. São Francisco de Sales diz que se nós nada mais fazemos quando rezamos do que afastar distrações e tentações, que rezamos bem. Taulero também diz que aquele que no tempo da secura espiritual perseverar na oração, lhe concederá Deus maiores graças do que aquele que orar com sensível devoção. O padre Rodrigues diz que um certo homem confessava que pelo espaço de quarenta anos não tinha expe­rimentado consolação alguma na oração, mas que naqueles dias em que orava, se sentia mais forte em virtude; porém, se não orava conforme o costume, se sentia possuído de tal fraqueza, que estava intei­ramente incapaz de fazer obra alguma boa. 

São Boaventura e Gerson dizem que muitos que durante a oração não têm a atenção que desejam servem mais a Deus do que outros que a conservam; porque essa falta os obriga a serem mais diligentes: pois que, se assim não fosse, se poderiam tornar negligentes e soberbos, na ideia de que haviam achado o que procuravam. E o que temos dito da secura espiritual podemos também dizer das tentações; porém, se Deus permite que se­jamos tentados, ainda que devamos trabalhar para evitar as tentações, sejam estas contra a pureza, ou contra qualquer virtude, não devemos nos lastimar; mas, também nisto, resignar-nos à divina vontade. São Paulo, quando deprecava para ser livre de tentação impura, respondeu o Senhor: A minha graça te é suficiente. (2 Cor 12, 9). E assim, quando Deus não nos concede a mercê de vivermos libertos de tentações que nos molestam, digamos: Senhor faze e permite o que quiseres: a Vossa graça me é suficiente; mas dá-me o Vosso auxílio para que eu não a perca. Não são as ten­tações, mas o consentir nelas que nos priva da divina graça. Quando resistimos às ten­tações, tornamo-nos mais humildes, e adquirimos mais merecimento, que nos induz a recorrer a Deus com mais frequência, e nós estamos mais longe de O ofendermos, unindo-nos mais intimamente a Ele com o Seu Santo amor.


Nota:

1.    As tentações, aqui, devem ser entendidas como permitidas por Deus, com o propósito de nossa santificação. Com efeito, diz a epístola de São Tiago: Ninguém, quando for tentado, diga: “É Deus quem me tenta”. Deus é inacessível ao mal e não tenta a ninguém. (Tg 1, 13). Assim, ainda que não nos queira tentar, em sua excelsa providência, Deus as permite para colher os frutos que lhe aprouver.

Referência:

1.    LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Tratado da Conformidade com a vontade de Deus. Niterói – RJ: Escola Salesiana, 1913, p. 34-40.

Maria Sempre!

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