[…] Finalmente devemos unir-nos à vontade de Deus no que toca à nossa morte, tanto no tempo, como na maneira que Deus tenha determinado que ela nos chegue. Santa Gertrudes (I. I. Vita. C. 11), subindo uma vez a um monte, perdeu o equilíbrio e caiu em um vale. Suas companheiras perguntaram-lhe se não temia morrer sem os sacramentos? Ao que a Santa respondeu: Eu tenho grande desejo de morrer com os sacramentos, porém deixo isso à vontade de Deus, porque a melhor disposição para a morte é voluntariamente submeter-nos ao que Deus tiver determinado; portanto desejo a morte que ao Senhor for servido enviar-me.
Gregório relata nos seus diálogos (L. 3. G. 27) que os vândalos, tendo condenado à morte um certo sacerdote chamado Santolo, lhe deixaram a escolha do gênero de morte. O Santo homem recusou escolher, e disse: Eu estou nas mãos de Deus, e receberei aquela morte que Ele permitir que vós me deis; não quero outra. Este ato foi tanto do agrado do Senhor, que aqueles bárbaros, tendo resolvido degolá-lo, o braço do algoz, quando ia descarregar o golpe, foi suspenso; e aqueles homens, à vista de tão grande milagre, lhe concederam a vida. Portanto, quanto ao gênero de morte, devemos considerar o melhor, aquele que Deus nos tiver determinado. Digamos sempre, quando pensarmos na morte: Senhor, salvai a minha alma, e decretai a minha morte como vos aprouver.
Também devemos unir-nos com a divina vontade quanto ao tempo da nossa morte. O que é este mundo, senão uma prisão, na qual sofremos e estamos em contínuo risco de perder a Deus? Isto exclamou Davi: Soltai a minha alma de sua prisão. (Sl 141, 8). Isso fazia Santa Teresa suspirar pela morte. Quando ela ouvia as horas no relógio, alegrava-se e consolava-se que uma hora de sua vida estava passada; hora de perigo de perder a Deus. O padre Ávila dizia que aquele que não está em disposição imprópria para morrer deve desejar a morte, pelo perigo de perder a divina graça durante a vida.
Que coisa pode ser mais desejável e mais deleitosa do que assegurarmo-nos, por uma santa morte, da impossibilidade de perder o favor e a graça de Deus? Mas vós dizeis que nada tendes feito e adquirido para a vossa alma. Porém, se Deus quisesse que vós agora morrêsseis, que faríeis depois se tivésseis vivido contra a vontade de Deus? Quem sabe se teríeis aquele feliz fim que esperais? Quem sabe se mudaríeis vossos costumes, se cairíeis em novas culpas e vos perderíeis? E então se nada fizésseis enquanto vivêsseis, não vos seria possível o não cometer culpas, por leves que fossem. Porque, exclama S. Bernardo, porque desejamos nós a vida, a qual quanto mais se prolonga, mais pecaminosa é? E é certo que um único pecado venial desagrada mais a Deus do que Lhe agradam todas as obras boas que possamos fazer. Eu digo mais: aquele que pouco deseja o Céu prova que tem pouco amor de Deus. Quem ama deseja a presença do objeto amado; porém nós não podemos ver a Deus, se não deixarmos a terra; e por consequência os santos suspiravam pela morte, para poderem ir ver o seu amado Senhor. Assim exclamava Santo Agostinho: Oh, que possa eu morrer, que possa eu ir ver-Te. Também S. Paulo: Desejaria ver-me livre do cárcere do corpo e estar com Jesus Cristo. (Fl 1, 23). Igualmente Davi: Quando irei e aparecerei diante de Deus? (Sl 41, 3). E assim também dizem todas as almas que amam a Deus. Certo autor refere (Flores Emil.) (Graul. 4. C. 68) que um cavalheiro, indo caçar em um bosque, ouviu um homem cantando melodiosamente; parou e viu um pobre leproso cheio de chagas; perguntou-lhe o caçador se era ele quem estava cantando. Sim, respondeu o leproso, era eu. — E como podeis vós cantar e estar contente suportando aflições e dores, que vos vão gradualmente privando da vida? O leproso respondeu: Entre mim e o Senhor, nada mais há que esta muralha de barro que é o meu corpo; removido este obstáculo, eu gozarei o meu Deus, e vendo que todos os dias me vai caindo a pedaços, alegro-me e canto.
Enfim, também nos graus de graça e glória, é preciso conformarmo-nos com o divino querer. Devemos estimar aquelas coisas, que pertencem à gloria de Deus, mas devemos estimar ainda mais a Sua divina vontade. Devemos desejar amá-lO mais que os serafins; mas não devemos desejar maior grau de amor que aquele que o Senhor tem determinado conceder-nos. O padre Ávila diz (Audi. filia. C. 22): Eu creio que os santos desejariam ser ainda melhores do que foram; porém esses desejos não perturbavam a paz de suas almas, porque eles, se assim o desejavam, não era por motivos de próprio interesse, mas para a glória de Deus, a cujas distribuições se submetiam, ainda que Ele menos lhes desse, estimando como perfeito amor o estarem satisfeitos com o que Deus lhes tinha dado, e não apetecendo mais.
Assim Rodriguez o interpreta (Trat. 8. G. 30) que, ainda que devamos ser diligentes em aspirar a perfeição até onde possamos chegar, para não servir de escusa a nossa preguiça e tibieza, como alguns fazem, e dizermos “Deus nos dará isso”, “eu posso fazer só isso”, contudo, quando faltamos nessa carreira, não devemos perder a nossa paz de espírito, nem a conformidade com a vontade divina, a qual permitiu nossa falta, mas humilharmo-nos e arrependermo-nos; e procurando maior adjutório em Deus, prosseguir nossa carreira. Por esse modo, ainda que aspiremos a ser exaltados no Céu ao coro dos Serafins, não por certo para termos maior glória, mas sim para dar maior glória a Deus, e amá-lO ainda mais, todavia devemos resignar-nos à sua santa vontade, contentando-nos com aquele grau que a Sua misericórdia se digne conceder-nos.
Seria, pois, grande culpa desejar dons de sobrenatural oração, e particularmente êxtases e revelações. Os mestres da vida espiritual nos ensinam que, quando as almas são favorecidas com tais dons, deveriam orar para serem privadas deles, para poderem amar a Deus pelo puro caminho da fé, o qual é o mais seguro. Muitos têm chegado à perfeição, sem esses sobrenaturais favores; a virtude é bastante para elevar a alma à santidade, e principalmente à uniformidade com a vontade de Deus. E se Deus não se apraz de elevar-nos a um sublime grau de graça e glória, devemos conformar-nos à Sua santa vontade, pedindo-Lhe que, ao menos, por Sua misericórdia, sejamos salvos. Se assim fizermos, não será pequena a recompensa, a qual o nosso bom Senhor derramará sobre nós pela Sua bondade, porque Ele ama sobretudo aqueles que se resignam às Suas determinações.
Numa palavra, devemos olhar para tudo quanto nos acontecer como vindo das mãos de Deus. E a este fim se devem dirigir todas as nossas ações. Fazer a vontade de Deus, e fazê-la porque é a Sua vontade. E para assim o observarmos mais seguramente, devemos deixar-nos guiar por nossos diretores, quanto ao interno, em ordem a conhecermos a vontade de Deus a nosso respeito, tendo grande confiança nessas palavras de Jesus Cristo: Aquele que vos ouve, a mim ouve. (Lc 10, 16)
E sobretudo devemos ser cuidadosos de servir a Deus por aquele caminho pelo qual Ele quer que O sirvamos. Digo isso em ordem a evitar a ilusão de muitos, que se entretêm com a ideia de que estão perdendo o seu tempo, e dizem: Se eu estivesse em um deserto, se entrasse em um mosteiro, se eu estivesse em outra qualquer parte que não fosse esta, distante de parentes e companheiros, viria a ser santo; praticaria estas ou aquelas mortificações, e me entregaria todo à oração. Eles dizem “eu faria, eu faria”, no entanto, suportando involuntariamente a cruz que Deus lhes tem dado, não caminhando pela vereda que o Senhor lhes tem mostrado, não só não se tornam santos, mas fazem-se maus, péssimos. Esses desejos são muitas vezes tentações do Diabo, porque não são conformes com a vontade de Deus; e devemos por isso rejeitá-los, e tomar ânimo para servimos a Deus no caminho que Ele nos tem escolhido. Fazendo assim, viremos a ser santos, em qualquer estado de vida, em que o Senhor nos tenha colocado.
Queiramos, pois, sempre o que Deus quer, e fazendo assim, Ele nos abraçará em Seu seio. Para esse fim façamo-nos familiares com certas passagens da Escritura, as quais nos chamam a unirmo-nos em todo o tempo com a divina vontade: Senhor, que queres Tu que eu faça? Dize-me, ó Deus, o que queres de mim, e eu cumprirei a Vossa vontade em todas as coisas. Eu sou Vosso, salvai-me. (Sl 118, 94). Já não sou de mim mesmo, mas Vosso, ó Senhor, faze de mim o que for do Vosso agrado. Particularmente quando alguma pesada adversidade nos oprime, a morte dos parentes ou amigos, ou a perda de bens ou de reputação, digamos: sim, meu Pai, sim, meu Deus, porque assim Vos é agradável. Sim, meu Pai e meu Senhor, assim seja feito, porque assim Vos agrada (Mt 11, 26). E sobretudo seja-nos preciosa aquela oração que Jesus Cristo nos ensinou: Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no Céu. Nosso Senhor disse à Santa Catarina de Gênova que, todas as vezes que ela recitasse o Pai Nosso, se demorasse particularmente nessas palavras, rogando-Lhe que ela pudesse cumprir na terra a Sua santíssima vontade, com a mesma perfeição com que os Bem-Aventurados a cumprem no Céu. Façamos, pois, outro tanto, e seremos santos no Céu.
Nota:
1. LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Tratado da Conformidade com a vontade de Deus. Niterói – RJ: Escola Salesiana, 1913, p. 40-48.