A Conformidade Com a Vontade de Deus (VII)

"Desejaria ver-me livre do cárcere do corpo e estar com Jesus Cristo." (Fl 1, 23). Sétima (e última) parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
Tempo Estimado de Leitura: 8 minutos

A Conformidade Com a Vontade de Deus (VII)

"Desejaria ver-me livre do cárcere do corpo e estar com Jesus Cristo." (Fl 1, 23). Sétima (e última) parte da série de artigos sobre o Tratado da Conformidade Com a Vontade de Deus.
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[…] Finalmente devemos unir-nos à vontade de Deus no que toca à nossa morte, tanto no tempo, como na maneira que Deus te­nha determinado que ela nos chegue. Santa Gertrudes (I. I. Vita. C. 11), subindo uma vez a um monte, perdeu o equilíbrio e caiu em um vale. Suas companheiras pergun­taram-lhe se não temia morrer sem os sacramentos? Ao que a Santa respondeu: Eu tenho grande desejo de morrer com os sacramentos, porém deixo isso à vontade de Deus, porque a melhor disposição para a morte é voluntariamente submeter-nos ao que Deus tiver determinado; portanto de­sejo a morte que ao Senhor for servido en­viar-me.

Gregório relata nos seus diálogos (L. 3. G. 27) que os vândalos, tendo condenado à morte um certo sacerdote chamado Santolo, lhe deixaram a escolha do gênero de morte. O Santo homem recusou escolher, e disse: Eu estou nas mãos de Deus, e receberei aquela morte que Ele permitir que vós me deis; não quero ou­tra. Este ato foi tanto do agrado do Senhor, que aqueles bárbaros, tendo resol­vido degolá-lo, o braço do algoz, quando ia descarregar o golpe, foi suspenso; e aqueles homens, à vista de tão grande milagre, lhe concederam a vida. Portanto, quanto ao gênero de morte, devemos consi­derar o melhor, aquele que Deus nos tiver determinado. Digamos sempre, quando pen­sarmos na morte: Senhor, salvai a minha alma, e decretai a minha morte como vos aprouver.

Também devemos unir-nos com a divina vontade quanto ao tempo da nossa morte. O que é este mundo, senão uma prisão, na qual sofremos e estamos em contínuo risco de perder a Deus? Isto exclamou Davi: Soltai a minha alma de sua prisão. (Sl 141, 8). Isso fazia Santa Teresa suspirar pela morte. Quando ela ouvia as horas no relógio, alegrava-se e consolava-se que uma hora de sua vida estava passada; hora de perigo de perder a Deus. O padre Ávila dizia que aquele que não está em dispo­sição imprópria para morrer deve desejar a morte, pelo perigo de perder a divina graça durante a vida.

Que coisa pode ser mais desejável e mais deleitosa do que assegurarmo-nos, por uma santa morte, da impos­sibilidade de perder o favor e a graça de Deus? Mas vós dizeis que nada tendes feito e adquirido para a vossa alma. Porém, se Deus quisesse que vós agora morrêsseis, que faríeis depois se tivésseis vivido contra a vontade de Deus? Quem sabe se teríeis aquele feliz fim que esperais? Quem sabe se mudaríeis vossos costumes, se cairíeis em novas culpas e vos perderíeis? E então se nada fizésseis enquanto vivêsseis, não vos seria possível o não cometer culpas, por leves que fossem. Porque, exclama S. Bernardo, porque desejamos nós a vida, a qual quanto mais se prolonga, mais pecaminosa é? E é certo que um único pecado venial desagrada mais a Deus do que Lhe agradam todas as obras boas que possamos fazer. Eu digo mais: aquele que pouco deseja o Céu prova que tem pouco amor de Deus. Quem ama deseja a presença do objeto amado; porém nós não podemos ver a Deus, se não deixarmos a terra; e por consequência os santos suspiravam pela morte, para po­derem ir ver o seu amado Senhor. Assim exclamava Santo Agostinho: Oh, que possa eu morrer, que possa eu ir ver-Te. Também S. Paulo: Desejaria ver-me livre do cárcere do corpo e estar com Jesus Cristo. (Fl 1, 23). Igualmente Davi: Quando irei e aparecerei diante de Deus? (Sl 41, 3). E assim também dizem todas as almas que amam a Deus. Certo autor refere (Flores Emil.) (Graul. 4. C. 68) que um cavalheiro, indo caçar em um bosque, ouviu um homem cantando melodiosamente; parou e viu um pobre leproso cheio de chagas; perguntou-lhe o caçador se era ele quem estava cantando. Sim, respondeu o leproso, era eu. — E como podeis vós cantar e estar contente suportando aflições e dores, que vos vão gradual­mente privando da vida? O leproso res­pondeu: Entre mim e o Senhor, nada mais há que esta muralha de barro que é o meu corpo; removido este obstáculo, eu gozarei o meu Deus, e vendo que todos os dias me vai caindo a pedaços, alegro-me e canto.

Enfim, também nos graus de graça e glória, é preciso conformarmo-nos com o di­vino querer. Devemos estimar aquelas coi­sas, que pertencem à gloria de Deus, mas devemos estimar ainda mais a Sua divina vontade. Devemos desejar amá-lO mais que os serafins; mas não devemos desejar maior grau de amor que aquele que o Senhor tem determinado conceder-nos. O padre Ávila diz (Audi. filia. C. 22): Eu creio que os santos desejariam ser ainda melhores do que foram; porém esses dese­jos não perturbavam a paz de suas almas, porque eles, se assim o desejavam, não era por motivos de próprio interesse, mas para a glória de Deus, a cujas distribuições se submetiam, ainda que Ele menos lhes desse, estimando como perfeito amor o estarem satisfeitos com o que Deus lhes tinha dado, e não apetecendo mais.

Assim Rodriguez o interpreta (Trat. 8. G. 30) que, ainda que devamos ser diligentes em aspirar a perfeição até onde possamos chegar, para não servir de escusa a nossa preguiça e tibieza, como alguns fazem, e dizermos “Deus nos dará isso”, “eu posso fazer só isso”, contudo, quando faltamos nessa carreira, não devemos perder a nossa paz de espírito, nem a conformidade com a vontade divina, a qual permitiu nossa falta, mas humilharmo-nos e arrependermo-nos; e procurando maior adjutório em Deus, prosseguir nossa carreira. Por esse modo, ainda que aspiremos a ser exaltados no Céu ao coro dos Serafins, não por certo para termos maior glória, mas sim para dar maior glória a Deus, e amá-lO ainda mais, todavia de­vemos resignar-nos à sua santa vontade, contentando-nos com aquele grau que a Sua misericórdia se digne conceder-nos.

Seria, pois, grande culpa desejar dons de sobrenatural oração, e particularmente êxtases e revelações. Os mestres da vida espi­ritual nos ensinam que, quando as almas são favorecidas com tais dons, deveriam orar para serem privadas deles, para po­derem amar a Deus pelo puro caminho da fé, o qual é o mais seguro. Muitos têm che­gado à perfeição, sem esses sobrenaturais favores; a virtude é bastante para elevar a alma à santidade, e principalmente à uniformidade com a vontade de Deus. E se Deus não se apraz de elevar-nos a um sublime grau de graça e glória, devemos conformar-nos à Sua santa vontade, pedin­do-Lhe que, ao menos, por Sua misericórdia, sejamos salvos. Se assim fizermos, não será pequena a recom­pensa, a qual o nosso bom Senhor derramará sobre nós pela Sua bon­dade, porque Ele ama sobretudo aqueles que se resignam às Suas determinações. 

Numa palavra, devemos olhar para tudo qu­anto nos acontecer como vindo das mãos de Deus. E a este fim se devem dirigir todas as nossas ações. Fazer a vontade de Deus, e fazê-la porque é a Sua vontade. E para assim o observarmos mais seguramente, devemos deixar-nos guiar por nossos dire­tores, quanto ao interno, em ordem a conhecermos a vontade de Deus a nosso respeito, tendo grande confiança nessas pa­lavras de Jesus Cristo: Aquele que vos ouve, a mim ouve. (Lc 10, 16) 

E sobretudo devemos ser cuidadosos de servir a Deus por aquele caminho pelo qual Ele quer que O sirvamos. Digo isso em ordem a evitar a ilusão de muitos, que se entretêm com a ideia de que estão perdendo o seu tempo, e dizem: Se eu estivesse em um deserto, se entrasse em um mosteiro, se eu estivesse em outra qualquer parte que não fosse esta, distante de parentes e companheiros, viria a ser santo; praticaria estas ou aquelas morti­ficações, e me entregaria todo à oração. Eles dizem “eu faria, eu faria”, no entanto, suportando involuntariamente a cruz que Deus lhes tem dado, não caminhando pela vereda que o Senhor lhes tem mostrado, não só não se tornam santos, mas fazem-se maus, péssimos. Esses desejos são muitas vezes tentações do Diabo, porque não são conformes com a vontade de Deus; e de­vemos por isso rejeitá-los, e tomar ânimo para servimos a Deus no caminho que Ele nos tem escolhido. Fazendo assim, viremos a ser santos, em qualquer estado de vida, em que o Senhor nos tenha colocado. 

Quei­ramos, pois, sempre o que Deus quer, e fa­zendo assim, Ele nos abraçará em Seu seio. Para esse fim façamo-nos familiares com certas passagens da Escritura, as quais nos chamam a unirmo-nos em todo o tempo com a divina vontade: Senhor, que queres Tu que eu faça? Dize-me, ó Deus, o que queres de mim, e eu cumprirei a Vossa vontade em todas as coisas. Eu sou Vosso, salvai-me. (Sl 118, 94). Já não sou de mim mesmo, mas Vosso, ó Senhor, faze de mim o que for do Vosso agrado. Particularmente quando alguma pesada adversidade nos oprime, a morte dos parentes ou amigos, ou a perda de bens ou de reputação, digamos: sim, meu Pai, sim, meu Deus, porque assim Vos é agradável. Sim, meu Pai e meu Senhor, assim seja feito, porque assim Vos agrada (Mt 11, 26). E sobretudo seja-nos preciosa aquela oração que Jesus Cristo nos ensinou: Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no Céu. Nosso Senhor disse à Santa Catarina de Gênova que, todas as vezes que ela recitasse o Pai Nosso, se demorasse particularmente nessas palavras, rogando-Lhe que ela pudesse cumprir na terra a Sua santíssima vontade, com a mesma per­feição com que os Bem-Aventurados a cum­prem no Céu. Façamos, pois, outro tanto, e seremos santos no Céu.


Nota:

1.    LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Tratado da Conformidade com a vontade de Deus. Niterói – RJ: Escola Salesiana, 1913, p. 40-48.

Maria Sempre!

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