O vínculo entre a piedade dos mineiros e a sua padroeira

Neste dia em que se completam 60 anos da Consagração do estado de Minas Gerais à sua padroeira, temos a grata satisfação de publicar o seguinte texto, que descreve uma peculiaridade da catolicidade dos mineiros em estreita relação com aquela, a Senhora da Piedade.
Tempo Estimado de Leitura: 7 minutos

O vínculo entre a piedade dos mineiros e a sua padroeira

Neste dia em que se completam 60 anos da Consagração do estado de Minas Gerais à sua padroeira, temos a grata satisfação de publicar o seguinte texto, que descreve uma peculiaridade da catolicidade dos mineiros em estreita relação com aquela, a Senhora da Piedade.
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Na vida de piedade, o mineiro se sente mais atraído pelas manifestações do sofrimento do que pelas expressões do júbilo e do triunfo.

Adora mais o Cristo sofredor da Paixão do que o Senhor glorioso da Ressurreição.

Sua piedade alimenta-se mais da Sexta-Feira Santa do que das alegrias triunfais da Páscoa, mais da contemplação da Agonia no Horto do que das esperanças de Pentecostes, mais da Flagelação do que da inocência matutina do Natal.

Basta ver a diferença de povo nas procissões em que se venera a dor e nas cerimônias em que o júbilo é celebrado. Como as procissões do Encontro e do Senhor Morto eram atulhadas de gente! E como são cultuados o Senhor dos Passos, o Senhor Morto, o Senhor do Horto, o Senhor do Sepulcro, o Senhor Bom Jesus de Matosinhos, o Senhor da Agonia, a Santa Cruz!

Santuário da Piedade Foto: Sérgio Mourão / CC BY-SA

Não são apenas os costumes herdados da Península Ibérica, pois lá também o olhar do povo se fixa mais no Cristo padecente do que no Cristo vitorioso_ as causas desta atitude no mineiro. Há ainda, em reforço, uma razão que sobe do fundo de sua alma. Acostumado a observar as almas, o mineiro habitua-se desde cedo a colocar um olhar sem romantismos nos abismos sombrios da consciência humana; não se espanta pois com a força do mal, nem com a extensão gigantesca do pecado, quando os conhece.

Seu senso religioso o faz perceber que o sofrimento, como um cautério, é necessário para consertar muitas coisas na vida, as quais, sem o padecimento, continuariam a obra de corrosão nas almas. E que há portanto uma lógica profunda, de efeitos regeneradores, na pregação da Cruz e na contemplação da Paixão.

Sente-se por isso tocado de maneira especial quando considera até que ponto o Salvador quis sofrer para nos resgatar. E isso apesar de nossas ingratidões e de estarmos enlameados pelo pecado. “Ninguém tem maior amor que o daquele que dá a sua vida por seus amigos. Vós sois meus amigos” (Jo 15, 13).

De outro lado, aqui também está presente o hábito da solidariedade na dor. Há em Minas um certo pudor de felicitar os que estão na alegria e, especialmente, no triunfo. E é compreensível. É muito fácil ser solidário no triunfo, e pode até revelar oportunismo. Os bons sentimentos e a verdadeira amizade se manifestam principalmente nas horas de sofrimento e de derrota.

Os amigos da pândega e das ocasiões de triunfo raras vezes são os mesmos das horas da dor; muito particularmente daquelas em que o isolamento injusto cerca com sua funda vala de exclusão, ou nas ocasiões duras em que ruge a perseguição dos fortes e bem colocados. Aí é preciso uma forma especial de valentia, para fugir dos vencedores e estar ao lado das vítimas derrotadas, manifestando-lhes solidariedade. Sempre foi fácil encontrar razões (de fato, pretextos) para deixá-las ao relento, sós, sob o granizo gelado da perseguição… E por isso Cristo mais venerado é o que está padecendo: preso, só, seus discípulos fugiram, contra ele ruge a perseguição dos poderosos da Judéia.

Nesses pontos também, a religiosidade mineira não se distancia de sua origem ibérica. Ainda que seja mais chã e singela. O mineiro não tem, como o espanhol, o portentoso senso das antíteses que manifesta, por exemplo, ao exprimir a grandeza trágica da Semana Santa. El Cristo del Gran Poder de Sevilha não é o Cristo glorioso e triunfante, mas o Cristo agredido, chagado e abandonado pelos amigos, cercado de inimigos, aparentemente na derrota definitiva. E é nessa hora que o espanhol – amante dos contrastes, e que sente bem a beleza especial das coisas que desconcertam – percebe melhor em Cristo o poder sem limites, o dominador absoluto que dispõe de tudo. E aí então ele adora El Cristo del Gran Poder.

Vista áerea da Basílica da Piedade. Foto: Henrique Caetano, disponível no site Conheça Minas

É portanto natural que Senhora da Piedade seja das devoções mais populares em Minas. É sua padroeira. Vela especialmente por Minas nos píncaros da serra do mesmo nome, num modesto santuário, ponto de confluência das mais elevadas aspirações da alma montanhesa, distante dos ruídos do mundo, envolto na paz, perfumado pela presença imponderável do sobrenatural. Ali, tão alto, tão longe de tudo o que conta para as ambições e os prazeres, parece que o Céu se debruça sobre a terra, fica mais próximo dos homens, com ouvidos mais misericordiosos e exoráveis. Local de peregrinação, eminência sagrada, recanto poético e de passeio, ponto de remanso na turbulência da existência rude que transcorre abaixo.

Senhora da Piedade. Existe invocação que retrate melhor a dor da Mãe de Deus? Na Virgem padecente, que olha o Cristo morto reclinado no seu colo, duas dores se reverenciam, uma presente e outra passada: a dor da Mãe perfeita que chora a outra dor, do Filho inocente. Ele não sofre mais, pois já padeceu tudo, e agora jaz inanimado, a cabeça descansando nas dobras do vestido, parecendo ter enfim ali junto dela, rodeado ainda dos inimigos que festejam a vitória ignóbil, uma espécie de alívio, o repouso final negado pela sanha dos maus. Dali a pouco esta Mãe vai, com um ânimo que triunfa até da dor mais dilacerante, junto com alguns discípulos e as Santas Mulheres, levar o Filho para o sepulcro. É seu único lugar de refúgio permitido, que O protege contra a agressão dos facínoras que o mataram.

Jesus nos braços de Maria. Foto: Marcos Figueiredo, disponível no site da arquidiocese de BH

A devoção da Piedade era muito cara à gente lusa. Uma pintura de Nossa Senhora da Piedade foi sempre o emblema das Santas Casas de Misericórdia, que por iniciativa de Frei Miguel de Contreiras fundaram-se em Portugal, começando por Lisboa. De lá esta devoção veio para o Brasil e se difundiu nas Minas.


Notas históricas:

1.    Conta a tradição oral que, por volta de 1760, duas meninas viram nas cercanias da serra do Sabarabuçu, Caeté-MG, a imagem da Virgem Maria com Jesus morto nos braços. Sendo uma delas muda de nascença, a qual, desde esse fato, passou a contar a todos do ocorrido. Foi o suficiente para atrair devotos a frequentar o alto da serra transformando-o num local de oração. Motivado por essa devoção e com autorização do bispado de Mariana, em 1767, Antônio da Silva Bracarena se empenhou em construir uma ermida no ponto mais alto daquela montanha; a igreja ficara pronta em 1778 e com base na tradição que já existia foi dedicada ao título de Nossa Senhora da Piedade, no qual se venera a Virgem Maria recebendo Jesus após a crucificação. Desde então, o local passou a ser chamado “Serra da Piedade”, recebendo romarias e sendo palco de incontáveis Graças alcançadas. A modesta capela recebeu um altar barroco com uma bela imagem da Santíssima Virgem sob esse título, sendo a autoria da escultura atribuída ao mestre Aleijadinho.

2.    No ano de 1876, por concessão do Papa Pio IX, foi instituído um jubileu anual e desde então atrai muitos fiéis ao local no mês de agosto. Posteriormente, em 1958, atendendo a pedidos dos bispos mineiros e do então governador de Minas Gerais (Bias Fortes), o Papa João XXIII concedeu prerrogativas litúrgicas de Padroeira do estado mineiro à Santíssima Virgem, invocada sob o título de Nossa Senhora da Piedade. Finalmente, em 31 de julho de 1960, ocorreu a solenidade da Consagração do estado de Minas à Nossa Senhora da Piedade, com uma apoteótica cerimônia na Praça da Liberdade (Belo Horizonte-MG) que contou com a presença de 40 bispos mineiros, do governador do estado e demais autoridades civis e militares.


Referências:

1.   MELO, Péricles Capanema Ferreira e. Minas, os mineiros e seus mineirismos. São Paulo – SP: Artpress, 2002. p. 81 – 83.

2.   Santuário de Nossa Senhora da Piedade – Caeté, Minas Gerais. Disponível em: https://bityli.com/ZRPYC. Acesso em 24/07/2020.

Maria Sempre!

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